Conflitos no país fazem família de Amer Salha perder tudo e mudar-se para o Brasil atrás de paz. Aos 16 anos, garoto aproveita esporte para se entrosar com nova vida
Jovens se reúnem em um dia qualquer para jogar videogame. Cena comum em praticamente todos os cantos do mundo, do Brasil ao Japão, mas aconteceu na Síria manchada pelo início de uma guerra civil que dura até hoje. O lugar errado, na hora errada, o que por pouco não transforma um encontro divertido em imensa tragédia. Um míssil atinge um conglomerado de prédios, destrói as construções e deixa feridos e rastros. Mas, por milagre, não explode.
Amer F. Salha é um dos sobreviventes. Ao lado de um grupo de amigos, o rapaz de 16 anos sai com pequenos ferimentos e marcas até hoje mostradas como cicatrizes de vitória. Os olhos deste garoto sírio viram muito mais do que a idade sugere. Viram a destruição de sua cidade-natal, o desabamento do prédio em que vivia, companheiros serem vítimas e a situação financeira da família ruir. Por sorte, o campo de visão hoje é bem melhor.
Ele deixou a guerra civil para trás e, ao lado dos pais e da irmã mais nova, embarcou para o Brasil, onde vive – legalmente – em Campinas, interior de São Paulo. Cursa o colegial em uma escola particular, ajuda a mãe em um trabalho caseiro e refaz a vida pouco a pouco. De antigo, só a paixão pela bola. Ele treina há dois meses com o time sub-17 do Guarani, clube que lhe abriu as portas para treinar e, por meio do esporte, sonhar.
Amer arrisca chutes no centro de treinamento do Guarani, com o Brinco de Ouro como paisagem (Foto: Murilo Borges)
– Vou ter sucesso, porque o futebol é minha vida – afirma o garoto.
Destroços do prédio que Amer e amigos usavam para jogar videogame na Síria (Foto: Arquivo pessoal)
A família tenta se adaptar diariamente às diferenças entre os países desde que chegou ao Brasil, há três meses. O primeiro passo, e talvez o mais difícil, é deixar para trás tudo o que passou. Amer morava na capital Damasco, um dos principais alvos da guerra, até perder o apartamento, bombardeado. Com os pais e a irmã, tentou a sorte em Kassab e Lattakia, até perceberem que a sobrevivência só seria possível em um lugar distante.
Os pais de Amer gastaram milhares de dólares e conseguiram, na embaixada brasileira em Beirute (capital do Líbano, país vizinho), vistos de permanência no Brasil. Embarcaram em Dubai, moraram pouco tempo em São Paulo e mudaram-se para Campinas. No interior, tentam recuperar a vida. Até hoje, a irmã tem traumas adquiridos na antiga casa. O pai trabalha em uma empresa que vende programas de computador. A mãe cozinha para fora.
– Minha vida era muito boa, tudo era maravilhoso. Meu pai tinha emprego, tínhamos uma casa. Mas daí a guerra veio e perdemos tudo. A situação ficou ruim na Síria em 2011, então viajamos de Damasco para Kassab (cidade entre Síria e Turquia), onde ficamos três meses, depois fomos para Lattakia, onde moramos até agosto de 2015. Meu pai tinha amigos, e eles nos falaram que as pessoas no Brasil eram boas, por isso viemos. Aqui as pessoas são adoráveis, não há guerra. Nossa situação ainda não é das melhores, mas está evoluindo – diz o garoto, que concilia os afazeres de casa com os estudos e o futebol.
Amer com os pais e a irmã mais nova, em passeio na região de Campinas, em 2015 (Foto: Arquivo pessoal)
Apesar de viverem legalmente no Brasil, Amer e os familiares aumentam a estatística de sírios que foram embora por causa da guerra civil vigente desde 2011. Dos 23 milhões de habitantes, mais da metade não está mais no país, que viu também a morte de 240 mil pessoas após o começo dos conflitos. Dos refugiados, muitos optam pelo Brasil, que tem 2.077 habitantes da Síria em seu território (maior entre as nações da América Latina).
A dificuldade de adaptação ao Brasil só não é maior graças ao futebol. Por indicação de pessoas próximas a dirigentes, Amer começou a treinar no Guarani há um mês. Ele, que joga de atacante, completa o elenco do time sub-17 duas vezes por semana. Apesar de falar quatro línguas (inglês, árabe, francês e russo), o sírio ainda esbarra no idioma para se comunicar com a maioria dos garotos. Sabe poucas palavras em português. A exceção é Lohan Costa, que se tornou seu principal amigo.
– Quando o Amer chegou no Guarani, a gente estava almoçando lá no refeitório. Uma advogada dele perguntou quem falava inglês aqui no clube. Levantei a mão, apesar de meio confuso. Por que será que estava perguntando isso? Aí ela falou que viria um sírio para jogar conosco. Fiquei feliz, porque é outra cultura, outra região – lembra o atacante, um dos principais destaques da equipe de base do Bugre.
Nasceu ali uma amizade dentro e fora de campo. Por ser o único a falar inglês entre os meninos, Lohan serve de intérprete a Amer. Já teve, muitas vezes, que traduzir alguma reclamação de um colega no calor do jogo, mas fez de um jeito bem mais sutil. Tudo para preservar o companheiro.
– Falo algo legal e dou um abraço nele (risos). Às vezes estou lá na frente do ônibus, ele pede para eu traduzir algo, eu tenho que passar por todo mundo para falar com ele.
Garotos do elenco sub-17 têm dificuldade para se comunicar com o sírio, que fala quatro idiomas (Foto: Murilo Borges)
Amer faz parte de um plano futuro do Guarani. O clube evita promessas ao garoto, que na Síria jogava em um clube local e participava de competições com a seleção sub-17. A diferença para outros meninos da base ainda é grande, segundo avaliação de integrantes da comissão técnica. O Bugre, no entanto, dará oportunidade ao sírio. A ideia é criar um programa de intercâmbio, que atraia outras nacionalidades ao Brinco de Ouro e aumente as chances de um atleta estrangeiro emplacar com a camisa do Bugre.
– A gente tem a ideia de trazer atletas de outros países. O clube procura fazer um laboratório com o Amer para saber como faria em 2016 com outros, até para poder sentir a questão de adaptação, do clima, da logística que o clube oferece. A ideia é projetá-lo para que ele consiga, quem sabe no futuro, subir de categoria. O processo vai dizer se ele tem condição ou não de chegar a uma equipe profissional – explica Marcelo Casado, coordenador-técnico das categorias de base do Guarani desde janeiro de 2015.
– Amer é um menino que chegou bem tímido e no primeiro dia se soltou, fazendo o recreativo com os outros garotos. A gente sabe a história de vida e tudo que ele passou por lá. É legal saber que o esporte pode mudar muita coisa na vida de um jovem. A gente vai se virando no inglês, e ele está lutando para aprender o português. Crescer aqui será uma lição de vida – complementa Angelo Foroni, ex-jogador e técnico da equipe sub-17 do Bugre.
Sírio espera fazer sucesso no futebol que mais admira; ídolo é o meia Ronaldinho, sem clube (Foto: Murilo Borges)
O jovem não liga para as dificuldades que possam aparecer no caminho. Fã de Ronaldinho Gaúcho, sabe de cor todos os grandes destaques do futebol brasileiro atual, de Neymar até o volante Luiz Gustavo. E se espelha neles para concretizar um sonho de infância. Amer Salha gostaria de se profissionalizar no Guarani, jogar na Europa e alcançar o sonho máximo de dez em dez garotos de sua idade: atuar no Barcelona.
É claro que Amer sabe a dificuldade de atingir um status como esse no futebol. Sabe tanto que também trabalha com um plano B (atuar na área de física) caso as coisas no esporte não se encaixem como gostaria. Mas quem vai dizer que o sonho é impossível? Jamais ele, que sobreviveu e vivenciou tantas coisas para estar, hoje, mais perto da bola.
– Eu posso fazer isso, posso ser um jogador profissional. É meu maior sonho.
Os pés de Amer mal largam a bola, sua companheira desde os tempos de conflitos na Síria (Foto: Murilo Borges)
FONTE: GLOBO
FONTE: GLOBO