terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Perto da Eurocopa de 2012, mito do 'Jogo da Morte' ressurge na Ucrânia


Filme traz de volta história do time mandado para campo de concentração por se recusar a perder partida contra equipe nazista

Por Rafael Maranhão
Direto de Kiev, Ucrânia
Cartaz do filme sobre o 'jogo da morte' na Ucrânia (Foto: Divulgação)
Filme 'Match' tem estreia marcada para abril, às
vésperas da Eurocopa (Foto: Divulgação)


Num país que desapareceu há 20 anos, um time de futebol que nunca venceu campeonato virou lenda e inspirou até filme de Hollywood com participação de Pelé. O FC Start surgiu durante a ocupação de Kiev pelas tropas nazistas durante a II Guerra Mundial. Disputou nove partidas e triunfou em todas. Inclusive naquela que deveria perder. A vitória sobre uma equipe da força aérea alemã teria custado a vida de todos os jogadores, levados para os arredores da cidade e fuzilados ainda vestindo seus uniformes. O mito do "Jogo da Morte" tornou-se mais forte do que a história real, virou instrumento de propaganda e espalhou-se pelo mundo. A lenda perdeu força com o fim da União Soviética, mas renasce em 2012 num filme que chega aos cinemas poucos meses antes da Eurocopa na Ucrânia.
O FC Start era formado por oito jogadores do Dínamo de Kiev e três do Lokomotiv transformados em funcionários de uma padaria durante a ocupação da cidade. O trabalho era garantia de mínimas condições de sobrevivência. Um dos principais nomes do time era o talentoso atacante Makar Goncharenko. Artilheiro do campeonato soviético pelo Dínamo em 1938, com 19 gols, Goncharenko foi enviado para o campo de batalha como outros atletas quando a guerra paralisou o país. Mas guardou uniforme e chuteiras imaginando que quem vencesse, cedo ou tarde, gostaria de assistir a partidas de futebol novamente. Estava certo.
Apoiado por fascistas ucranianos, mais simpáticos a Adolf Hitler do que ao comunismo de Josef Stalin, os nazistas permitiram a disputa de jogos como forma de melhorar sua imagem junto à população de Kiev, ao mesmo tempo em que tentavam esconder o extermínio de judeus, ciganos e prisioneiros políticos nos campos de concentração. O FC Start foi autorizado a jogar contra equipes formadas por batalhões estacionados na cidade, formados por soldados alemãs, romenos e húngaros. Ganhou oito de suas nove partidas por goleada. Uma delas, no dia 6 de agosto de 1942, por 5 a 1 sobre o Flakelf, formado em sua maioria por pilotos da Luftwaffe.
A equipe da força aérea era considerada o que os alemães tinham de melhor em Kiev. A pesada derrota para um bando de padeiros desnutridos foi embaraçosa demais e mereceu uma revanche, marcada para três dias mais tarde. A atmosfera do segundo jogo contra o Flakelf foi tensa, com soldados ao redor e dentro do estádio. No intervalo, quando o Start vencia por 3 a 1, um oficial da SS, a tropa de elite nazista, entrou no vestiário com uma mensagem. De forma educada, parabenizou os ucranianos pela atuação mas disse que eles não poderiam vencer e que deveriam pensar nas consequências antes de voltar a campo. Na etapa final, o Start marcou mais duas vezes e ganhou por 5 a 3.
Estádio do 'jogo da morte' na Ucrânia (Foto: Rafael Maranhão/GLOBOESPORTE.COM)Estádio do 'Jogo da Morte' na Ucrânia está abandonado (Foto: Rafael Maranhão/GLOBOESPORTE.COM)
A versão que correu o mundo, reproduzida em obras como o livro "Futebol ao Sol e à Sombra", do uruguaio Eduardo Galeano, e servindo de base para filmes como "Fuga para a Vitória", de 1981, estrelando Pelé, Michael Caine e Sylvester Stallone, foi a de que todos os atletas teriam sido fuzilados naquele mesmo dia por não seguirem a recomendação de perder o jogo. Hoje sabe-se que isso não aconteceu e que apenas quatro jogadores não sobreviveram à guerra. Mas o destino do time realmente teria sido diferente caso tivesse saído derrotado daquela partida-revanche.
Um dos relatos considerados mais fieis sobre o destino do FC Start é o descrito pelo livro "Futebol & Guerra", do jornalista escocês Andy Dougan. Segundo ele, o time ainda disputaria mais uma partida sete dias após o "Jogo da Morte", mas logo depois seria desfeito por ordem do comando nazista da cidade, incomodado com as vitórias do Start servindo de inspiração para a resistência ucraniana. Os jogadores foram levados para interrogatórios pela Gestapo, a polícia secreta nazista. Eles teriam sido torturados e um deles, Nikolai Korotkykh, acusado de ser espião, acabou morrendo na prisão. O restante da equipe foi transferido para o campo de prisioneiros de Siretz.
Dougan escreveu que, em fevereiro de 1943, o comando de Siretz ordenou a execução de um em cada três presos de uma unidade como resposta a um plano de sabotagem. O jornalista ucraniano Valentin Shcherbachov, que entrevistou os sobreviventes, diz que, na verdade, os nazistas buscavam os responsáveis pelo ataque a um cão de guarda morto pelos prisioneiros. Entre os presos enfileirados estavam os jogadores do Start. O atacante Ivan Kuzmenko, o zagueiro Oleksey Klimenko e o goleiro Nikolai Trusevich, todos do Dínamo, foram mortos com tiros pelas costas. Antes de ser baleado, Trusevich teria gritado:
- O time vermelho nunca vai morrer.
campo do Star Jogo da Morte na Ucrânia (Foto: Rafael Maranhão / GLOBOESPORTE.COM)Jogo inspirou filme com Pelé e Silvester Stallone (Foto: Rafael Maranhão / GLOBOESPORTE.COM)
Os relatos sobre o jogo começaram a aparecer após a libertação de Kiev, em dezembro de 1943, mas foi somente nos anos 1950 que a lenda tornou-se a versão oficial, como instrumento de propaganda para valorizar a resiliência e o espírito de companheirismo soviéticos. Os sobreviventes mantiveram o silêncio com receio das consequências de negar a "verdade" divulgada pelo Estado. Um livro lançado em 1959 tratou de espalhar internacionalmente o mito do "Jogo da Morte". A história ganhou duas versões cinematográficas na União Soviética e também virou filme na Hungria. Em 1981, o campo do Zenit foi rebatizado estádio do Start com um monumento em memória aos jogadores.
Estádio do 'jogo da morte' na Ucrânia (Foto: Rafael Maranhão/GLOBOESPORTE.COM)
Monumento em memória aos jogadores
(Foto: Rafael Maranhão/GLOBOESPORTE.COM)
Com o desaparecimento da União Soviética e a independência da Ucrânia, em 1991, a verdadeira história do jogo foi revelada. O local da partida hoje está caindo aos pedaços e serve de área de lazer para os moradores da região, que passeiam e fazem exercícios ao redor do péssimo gramado. As arquibancadas sujas e com bancos quebrados são ocupadas por adolescentes fumando escondido e aposentados. O campo correu até o risco de desaparecer para dar lugar a novos prédios residenciais, mas foi salvo por iniciativa do campeão mundial peso pesado de boxe e político local Vitali Klitschko, candidato às eleições municipais em Kiev em 2012.
No ano da Eurocopa, organizada em conjunto por Ucrânia e Polônia, os 70 anos do "Jogo da Morte" serão lembrados por um novo filme, que deve fazer a lenda ganhar força novamente. Produção russo-ucraniana de 10 milhões de dólares, "Match", nome no original em russo, tem estreia marcada para o fim de abril, seis semanas antes do início do Euro 2012. É uma versão romanceada da história tendo como protagonista o goleiro Nikolai Ranevich, baseado em Trusevich, o goleiro morto em Siretz e que era um dos nomes mais famosos do futebol soviético nos anos 1930.
- Será um filme sobre a vida das pessoas envolvidas nesse episódio e as escolhas que fizeram quando todos disseram que deveriam se render - afirma o diretor, o russo Andrei Malyukov, que, em entrevista aos jornais ucranianos, lamentou apenas não ter podido utilizar o estádio do Start como cenário. - Tivemos que usar um pequeno campo nos arredores de Kiev. O campo do "Jogo da Morte" está muito descaracterizado, com os prédios à volta.
fonte: globo