Filme traz de volta história do time mandado para campo de concentração por se recusar a perder partida contra equipe nazista
Por Rafael Maranhão
Direto de Kiev, Ucrânia
Num país que desapareceu há 20 anos, um time de futebol que nunca venceu campeonato virou lenda e inspirou até filme de Hollywood com participação de Pelé. O FC Start surgiu durante a ocupação de Kiev pelas tropas nazistas durante a II Guerra Mundial. Disputou nove partidas e triunfou em todas. Inclusive naquela que deveria perder. A vitória sobre uma equipe da força aérea alemã teria custado a vida de todos os jogadores, levados para os arredores da cidade e fuzilados ainda vestindo seus uniformes. O mito do "Jogo da Morte" tornou-se mais forte do que a história real, virou instrumento de propaganda e espalhou-se pelo mundo. A lenda perdeu força com o fim da União Soviética, mas renasce em 2012 num filme que chega aos cinemas poucos meses antes da Eurocopa na Ucrânia.
O FC Start era formado por oito jogadores do Dínamo de Kiev e três do Lokomotiv transformados em funcionários de uma padaria durante a ocupação da cidade. O trabalho era garantia de mínimas condições de sobrevivência. Um dos principais nomes do time era o talentoso atacante Makar Goncharenko. Artilheiro do campeonato soviético pelo Dínamo em 1938, com 19 gols, Goncharenko foi enviado para o campo de batalha como outros atletas quando a guerra paralisou o país. Mas guardou uniforme e chuteiras imaginando que quem vencesse, cedo ou tarde, gostaria de assistir a partidas de futebol novamente. Estava certo.
Apoiado por fascistas ucranianos, mais simpáticos a Adolf Hitler do que ao comunismo de Josef Stalin, os nazistas permitiram a disputa de jogos como forma de melhorar sua imagem junto à população de Kiev, ao mesmo tempo em que tentavam esconder o extermínio de judeus, ciganos e prisioneiros políticos nos campos de concentração. O FC Start foi autorizado a jogar contra equipes formadas por batalhões estacionados na cidade, formados por soldados alemãs, romenos e húngaros. Ganhou oito de suas nove partidas por goleada. Uma delas, no dia 6 de agosto de 1942, por 5 a 1 sobre o Flakelf, formado em sua maioria por pilotos da Luftwaffe.
A equipe da força aérea era considerada o que os alemães tinham de melhor em Kiev. A pesada derrota para um bando de padeiros desnutridos foi embaraçosa demais e mereceu uma revanche, marcada para três dias mais tarde. A atmosfera do segundo jogo contra o Flakelf foi tensa, com soldados ao redor e dentro do estádio. No intervalo, quando o Start vencia por 3 a 1, um oficial da SS, a tropa de elite nazista, entrou no vestiário com uma mensagem. De forma educada, parabenizou os ucranianos pela atuação mas disse que eles não poderiam vencer e que deveriam pensar nas consequências antes de voltar a campo. Na etapa final, o Start marcou mais duas vezes e ganhou por 5 a 3.
A versão que correu o mundo, reproduzida em obras como o livro "Futebol ao Sol e à Sombra", do uruguaio Eduardo Galeano, e servindo de base para filmes como "Fuga para a Vitória", de 1981, estrelando Pelé, Michael Caine e Sylvester Stallone, foi a de que todos os atletas teriam sido fuzilados naquele mesmo dia por não seguirem a recomendação de perder o jogo. Hoje sabe-se que isso não aconteceu e que apenas quatro jogadores não sobreviveram à guerra. Mas o destino do time realmente teria sido diferente caso tivesse saído derrotado daquela partida-revanche.
Um dos relatos considerados mais fieis sobre o destino do FC Start é o descrito pelo livro "Futebol & Guerra", do jornalista escocês Andy Dougan. Segundo ele, o time ainda disputaria mais uma partida sete dias após o "Jogo da Morte", mas logo depois seria desfeito por ordem do comando nazista da cidade, incomodado com as vitórias do Start servindo de inspiração para a resistência ucraniana. Os jogadores foram levados para interrogatórios pela Gestapo, a polícia secreta nazista. Eles teriam sido torturados e um deles, Nikolai Korotkykh, acusado de ser espião, acabou morrendo na prisão. O restante da equipe foi transferido para o campo de prisioneiros de Siretz.
Dougan escreveu que, em fevereiro de 1943, o comando de Siretz ordenou a execução de um em cada três presos de uma unidade como resposta a um plano de sabotagem. O jornalista ucraniano Valentin Shcherbachov, que entrevistou os sobreviventes, diz que, na verdade, os nazistas buscavam os responsáveis pelo ataque a um cão de guarda morto pelos prisioneiros. Entre os presos enfileirados estavam os jogadores do Start. O atacante Ivan Kuzmenko, o zagueiro Oleksey Klimenko e o goleiro Nikolai Trusevich, todos do Dínamo, foram mortos com tiros pelas costas. Antes de ser baleado, Trusevich teria gritado:
- O time vermelho nunca vai morrer.
Os relatos sobre o jogo começaram a aparecer após a libertação de Kiev, em dezembro de 1943, mas foi somente nos anos 1950 que a lenda tornou-se a versão oficial, como instrumento de propaganda para valorizar a resiliência e o espírito de companheirismo soviéticos. Os sobreviventes mantiveram o silêncio com receio das consequências de negar a "verdade" divulgada pelo Estado. Um livro lançado em 1959 tratou de espalhar internacionalmente o mito do "Jogo da Morte". A história ganhou duas versões cinematográficas na União Soviética e também virou filme na Hungria. Em 1981, o campo do Zenit foi rebatizado estádio do Start com um monumento em memória aos jogadores.
Com o desaparecimento da União Soviética e a independência da Ucrânia, em 1991, a verdadeira história do jogo foi revelada. O local da partida hoje está caindo aos pedaços e serve de área de lazer para os moradores da região, que passeiam e fazem exercícios ao redor do péssimo gramado. As arquibancadas sujas e com bancos quebrados são ocupadas por adolescentes fumando escondido e aposentados. O campo correu até o risco de desaparecer para dar lugar a novos prédios residenciais, mas foi salvo por iniciativa do campeão mundial peso pesado de boxe e político local Vitali Klitschko, candidato às eleições municipais em Kiev em 2012.
No ano da Eurocopa, organizada em conjunto por Ucrânia e Polônia, os 70 anos do "Jogo da Morte" serão lembrados por um novo filme, que deve fazer a lenda ganhar força novamente. Produção russo-ucraniana de 10 milhões de dólares, "Match", nome no original em russo, tem estreia marcada para o fim de abril, seis semanas antes do início do Euro 2012. É uma versão romanceada da história tendo como protagonista o goleiro Nikolai Ranevich, baseado em Trusevich, o goleiro morto em Siretz e que era um dos nomes mais famosos do futebol soviético nos anos 1930.
- Será um filme sobre a vida das pessoas envolvidas nesse episódio e as escolhas que fizeram quando todos disseram que deveriam se render - afirma o diretor, o russo Andrei Malyukov, que, em entrevista aos jornais ucranianos, lamentou apenas não ter podido utilizar o estádio do Start como cenário. - Tivemos que usar um pequeno campo nos arredores de Kiev. O campo do "Jogo da Morte" está muito descaracterizado, com os prédios à volta.
fonte: globo